Neste artigo pretendo explicar por que é que a democracia liberal nasceu nos países do norte da Europa tocados pela influência protestante, e só tardiamente chegou aos países católicos do sul da Europa, como Espanha e Portugal.
Pretendo ainda sugerir que num país católico, como Portugal, a democracia liberal (e a própria ideia de liberdade) é sempre precária, e identificar de onde vêm os riscos à sua sobrevivência.
1. Liberdade: Valor Sagrado do Protestantismo
A ofensiva protestante contra a Igreja Católica dos começos do século XVI, numa altura em que a Espanha e Portugal lideravam a civilização, assentou, essencialmente, em cinco princípios, as famosas “solas protestantes”. Um dos mais importantes é o princípio “Sola Scriptura”.
O catolicismo acredita que Deus (ou a Verdade) está nas Escrituras mas também na Tradição, e quem interpreta as Escrituras, à luz da Tradição, é a Igreja. A Verdade é, portanto, institucional e comunicada pela elite (padres, professores) ao povo (leigos, ignorantes). O povo não tem que se esforçar para chegar à Verdade porque ela vem de cima, da autoridade institucional. No catolicismo, os crentes chegam a Deus através da autoridade da Igreja. A autoridade é um valor sagrado na cultura católica, o caminho para Deus.
No protestantismo, pelo contrário, o caminho para Deus é a liberdade. Para os protestantes, Deus está apenas nas Escrituras (Sola Scriptura). Prescindindo da autoridade interpretativa da Igreja, e revoltando-se até contra ela, o crente protestante que pretende chegar a Deus tem de estudar as Escrituras e debatê-las com outros crentes igualmente empenhados nesse fim. A liberdade de pensamento e de expressão torna-se no protestantismo um valor sagrado, o caminho para Deus.
Ora, é precisamente a liberdade de pensamento e de expressão o direito fundacional da democracia liberal.
A liberdade como valor sagrado, e a democracia liberal que dela emana, são criações dos países do norte da Europa (v.g., Inglaterra, Alemanha) que participaram na chamada Reforma Protestante. A Espanha e Portugal, que lideraram a chamada Contra-Reforma Católica, e que permaneceram predominantemente católicos até hoje, opuseram-se, durante séculos, quer à sacralização da liberdade quer à democracia liberal. O mais feroz instrumento dessa oposição foi a Inquisição, que deixou poderosas influências no actual Ministério Público.
A conclusão que daqui resulta é que a liberdade é um valor frágil na cultura católica dos portugueses, e a democracia liberal um regime político precário. Para o catolicismo, a liberdade é a fonte de todo o pecado. Basta ver o que o Catecismo da Igreja Católica, que exprime a sua doutrina oficial, tem a dizer sobre a liberdade:
1739. Liberdade e pecado. A liberdade do homem é finita e falível. E, de facto, o homem falhou. Livremente, pecou. Rejeitando o projecto divino de amor, enganou-se a si mesmo; tornou-se escravo do pecado. Esta primeira alienação gerou uma multidão de outras. A história da humanidade, desde as suas origens, dá testemunho de desgraças e opressões nascidas do coração do homem, como consequência de um mau uso da liberdade.
2. Liberdade e Racionalidade
O protestantismo cortou com a Igreja Católica que é a instituição que dita as verdades ao povo nos países tradicionalmente sujeitos à sua influência. Uma das consequências mais importantes deste corte foi a de obrigar o povo a procurar as verdades por si próprio.
Acabou-se o comodismo típico do povo católico que fica à espera que a elite da Igreja lhe venha dizer o que é verdade e o que não é verdade. Acabaram-se as verdades institucionais que vinham de cima e determinavam aquilo em que cada um devia acreditar. Esta tradição deixou no povo de cultura católica uma consequência trágica. Do ponto de vista intelectual, a Igreja fez do povo católico um rebanho onde reina a apatia intelectual.
Para os protestantes, a mensagem foi enérgica. Quem queria conhecer a Verdade tinha de a procurar e o principal instrumento estava mesmo ali à mão - a cabeça de cada um. Que cada um fizesse uso da sua cabeça para estudar as Escrituras, reflectir sobre elas e discuti-las livremente com os outros igualmente interessados na busca da Verdade.
Em comparação com os países católicos, a subida da literacia do povo foi vertiginosa nos países tocados pela influência protestante. Mas não apenas isso. O mais importante foi a cultura de investigação, reflexão e discussão livre e racional das ideias e das instituições inspirada pelo protestantismo, e a confiança das pessoas comuns na sua própria cabeça.
Desde então, praticamente todos os progressos da ciência, todos os progressos da tecnologia, todas as inovações sociais vieram dos países protestantes do norte da Europa ou dos seus descendentes na América do Norte (EUA e Canadá). O automóvel, o avião, a televisão, o ar condicionado, os medicamentos que prolongam a vida, o computador, a internet, o caminho para a lua, o telemóvel, as vacinas-covid, a lista é sem fim. As próprias ciências sociais, como a Economia, nasceram nesses países.
Ao contrário, nos países de cultura católica do sul da Europa, como Espanha, Itália e Portugal e seus descendentes na América Latina, o povo continuou comodamente à espera que as verdades viessem ter com ele e, à excepção de uma pequena elite, permaneceram sem hábitos de estudo, de investigação, de reflexão e de discussão livre e racional das ideias e das instituições.
3. A Justiça
É altura de perguntar: Qual é a principal diferença entre uma população que desde há séculos se habituou a estudar e a interpretar as Escrituras para conhecer a Palavra de Deus, como faz o protestantismo, e uma outra que conhece a Palavra de Deus através da autoridade do padre, como faz o catolicismo?
-Capacidade de julgamento.
Interpretar é julgar e essa é a principal diferença entre o povo de cultura protestante e o povo de cultura católica - a capacidade de julgamento que existe no primeiro e a sua radical ausência no segundo.
A democracia liberal é um regime de regras (Rule of Law ou Estado de Direito) em que dos três poderes do Estado - o legislativo, o executivo o judicial -, o mais importante é o judicial que interpreta as regras e as faz cumprir. O poder judicial é o árbitro do jogo democrático. Ora, o poder judicial, que apela à capacidade de julgamento, é precisamente o calcanhar de Aquiles da democracia liberal num país de cultura católica.
Quando o povo de cultura católica é chamado a desempenhar as profissões judiciais - como a de juiz, magistrado do Ministério Público ou simplesmente de advogado – está em desvantagem porque não existe tradição de julgamento.
A Igreja Católica nunca teve um órgão legislativo porque as suas leis estão na Tradição. Por isso, a falta de julgamento do povo católico começa no poder legislativo onde as leis, frequentemente mal feitas, se multiplicam e amontoam umas sobre as outras cada uma contradizendo as anteriores.
Mas é quando as leis chegam ao poder judicial, que tem de as interpretar e aplicar, que a péssima tradição jurídica - na realidade, ausência de tradição - do povo de cultura católica vem ao de cima com toda a clareza.
A mesma lei é hoje interpretada de uma maneira e amanhã de outra, frequentemente contrária. A excepção é interpretada como norma e a norma passa a ser excepção. Pessoas decentes são, por vezes, punidas e criminosos ficam à solta. A justiça é utilizada como arma de perseguição pessoal e política.
Os juristas, exprimindo a infeliz tradição (ou ausência dela) do país em que nasceram, são a grande tragédia da democracia liberal num país de tradição católica e é pela falta de confiança na justiça que a democracia liberal acabará por entrar em colapso.
O árbitro do jogo democrático e liberal, que é o sistema de justiça, não sabe arbitrar, e os jogadores acabam por perder a confiança no árbitro e acabar com o jogo.
Pedro Arroja
Economista e gestor
Não sei se foi para mim... sou sempre muito sensivel quando toda a estes assuntos, mas também por me afirmar como Protestante, sabendo que sou a minoria da minoria (tendo que agnóstico católico protestante).
Mas obrigado ❤️ acho que tudo que poderia adicionar mais coisas, mas já seria do ramo da interpretação bíblica, que não vale a pena no espaço libertário, que devemos (politicamente) ser laicos, correcto?
Deus Estado Indidivio... Pai Espírito Santo Filho? 😆 🤣 😆
Abraço a todos os libertários
O Prof Arroja saberá o q foi a U Salamanca do sec. de ouro em Espanha e Portugal, o séc. 16? Padres escolásticos Católicos q defendiam a busca da Verdade, orientados pela doutrina tomista...? É esta a tese de Rothbard e outros. Foi a IgCat, começando pela U Salamanca (e talvez até antes....) a fundadora da E. Austríaca de Economia e Direito, o edificio das ideias histórico q defende a Liberdade individual . Como diz Tom Woods, foi a Igreja Católica, sempre vilipendiada, a verdadeira Construtora da Civilização Ocidental. https://www.youtube.com/watch?v=m5siHd1P5zk&list=PL57857981F3CC5D78